Neste mês de agosto completamos 10 anos da vigência da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Esse marco regulatório trouxe avanços conceituais importantes, ao determinar as atribuições de cada um dos elos que compõem a complexa gestão de aproximadamente 200 mil toneladas de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU) que nós brasileiros produzimos todos os dias, de acordo com os dados da Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe).
Mas, apesar do modelo robusto e moderno previsto pela PNRS (Lei nº 12.305/10), o Brasil caminhou de forma muito tímida na implementação de sistemas de logística reversa. Como resultado, ainda não conseguimos dar a destinação adequada a grande parte dos resíduos gerados, especialmente quando falamos de reciclagem.
Continuamos enterrando junto com rejeitos orgânicos um rico material de embalagens que poderia estar gerando renda na base da pirâmide social e devolvendo à sociedade novos produtos de valor agregado, criando, assim, um ciclo virtuoso, atualmente alardeado pelo marketing como Economia Circular.
O cenário não é novo, é verdade, e não é só o Brasil que está patinando. Por aqui, muito já se discutiu para a construção de um novo cenário para a destinação os resíduos sólidos, tanto por parte dos órgãos governamentais, como pelos diversos setores empresariais e consumidores em geral. Mas o amadurecimento de uma solução mais eficaz, mesmo que básica, visando a futuras evoluções, ainda é muito lenta.
Com o crescimento das turbulências judiciais, via Ações Civis Públicas (ACPs) e distorções legislativas, por meio de projetos de lei de toda ordem, o cenário se torna ainda mais caótico. Energias e recursos se perdem em meio a defesas de interesses particulares, que pouco contribuem para um resultado de mais produtividade, por exemplo, para a reciclagem das embalagens.
Mas por que a implantação da logística reversa e da reciclagem não avançam?
A logística reversa, exigida pela lei, e a reciclagem de embalagens são fatores importantes para as soluções dos RSU, visto que as embalagens constituem aproximadamente 30% de todos o lixo brasileiro. Com mais de 20 anos participando intensamente de inúmeros projetos nessa área, inclusive das discussões para a criação da Lei 12.305 (PNRS), compartilho aqui algumas opiniões, olhando de três ângulos diferentes:
- O consumidor e a cidadania: com pouquíssimas horas dedicadas à educação ambiental, recebe diuturnamente inputs para consumir esse ou aquele produto, com embalagens A ou B. Mas obtém quase nada de informação para que adquira hábitos de descarte corretos. O uso de embalagens amigáveis ao meio ambiente já é explorado pelo marketing de empresas antenadas. No entanto, pouquíssimas instituições oferecem orientação para o descarte de forma abrangente, embora seja muito simples aprender e ensinar que não de seve jogar lixo na rua, rios ou praças. Os cidadãos poderiam ser mais conscienciosos e até cobrar, uns aos outros, para que seus descartes tenha um destino mais correto. Além disso, a valorização de produtos e embalagens contendo matéria-prima reciclada cria demanda sustentável e é fator importante, que pode colaborar muito com o avanço da logística reversa.
- O lucro e a sustentabilidade: os inúmeros setores empresariais têm visões e estratégias diferentes, o que os fazem defender equações e soluções díspares em relação à reciclagem e destinação ambientalmente adequada. Numa simplificação, talvez inusitada para alguns leitores, pode-se segmentar os resíduos pós- consumo (maioria embalagem) em duas categorias: os tecnicamente e economicamente viáveis para reciclagem e os que ainda não atingiram esse patamar. As empresas de cada um desses grupos costumam disputar, via lobby ou via mídia, por interpretações diferentes da legislação, para que as propostas de solução/destinação dos seus resíduos sejam aceitas pela sociedade. Óbvio que isso causa turbulências no entendimento de consumidores e agentes da lei.
Dois outros fatores importantes são: a amplitude e a legitimidade das ações. Atividades “impressionistas” e sem pragmatismo, assim como o desconhecimento ou inépcia nas atividades ligadas à sustentabilidade ou à circularidade podem levar tanto grandes empresas como pequenos negócios à ruína. Não há como ficar ausente a essas questões quando se quer ter um mínimo de longevidade para seus negócios. Fatores ligados a ESG (Environmental, Social and Governance) passam, definitivamente, a ter papel relevante tanto para grandes como para pequenas e médias organizações.
- Oscilações e limitações do poder público: a alternância de projetos públicos ambientais, a cada troca de ocupante de prefeituras, governos estaduais e federal, bem como os diferentes níveis de entendimento de suas equipes sobre o tema ambiental, é sem dúvida fator inibidor de soluções estruturadas e de longa duração. Costumamos ficar orgulhosos ao ouvirmos que nós brasileiros somos criativos. Mas, por outro lado, impressiona a quantidade de propostas de projetos e investimentos públicos e privados que nem são implantadas – ou quando são acabam sendo abandonadas pelo próximo governante. O desperdício do limitado recurso público tem sido evidente ao longo dos anos. É preciso constância de propósito e projetos estruturantes para se ter evolução no campo ambiental.
Apenas como exemplo – e ainda sem juízo de valor sobre a iniciativa – o Ministério do Meio Ambiente lançou no último dia 31 de julho uma consulta pública sobre mais uma iniciativa na área, o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), que versa sobre Cenários e Metas para os resíduos sólidos urbanos (RSU) num horizonte de 20 anos. O objetivo é, justamente, aumentar a coleta seletiva, a reciclagem dos materiais, reduzir desperdícios, incentivar o reaproveitamento energético, extinguir lixões etc.
Tendo em vista a recente aprovação, pelo Congresso Nacional, do novo marco regulatório do saneamento, os municípios, a quem cabe parcela essencial no estabelecimento da logística reversa, já tinham ganhado um novo prazo, depois de várias protelações, para implantar os seus sistemas de coleta e destinação correta dos resíduos sólidos urbanos. Espera-se que esse avanço finalmente ocorra a partir de agora, diante da previsão de investimento privado no setor, uma solução para o eterno argumento sobre a falta de recursos públicos a serem destinados a esta área.
Cabe ainda reflexões sobre judicialização das questões ambientais. Observamos atores, tanto do Ministério Público como do Judiciário, agindo dentro de suas esferas, tentando acelerar esse processo evolutivo. De certa forma, essa ação é importante para tirar da inércia alguns elos da sociedade que precisam apertar o botão de reset e parar de pensar “isso não é problema meu” ou tentar “empurrar o lixo para o vizinho”.
Por outro lado, pode-se observar certas invasões por parte do poder público, seja do Legislativo ou do Judiciário, atropelando áreas da ciência. Pesquisadores, engenheiros, técnicos, acadêmicos e diversos outros profissionais que trabalham, tanto nos projetos e produção de embalagens, como em questões ambientais e análises do ciclo de vida dos produtos, são simplesmente ignorados. Juízes, promotores, procuradores e legisladores tomam decisões baseados em artigos superficiais do Google e Wikipedia. Esquecem que as embalagens têm a função de proteger os alimentos, bebidas e diversos produtos e não podem falhar nessa função. A logística reversa e a destinação pós- consumo é muito importante, mas é imprescindível que se respeite as necessidades de cada embalagem e sua função no macrossistema, protegendo os alimentos desde a produção agrícola até a mesa do consumidor.
Os efeitos desse descompasso no caso da Reciclagem do PET
Parte da indústria, que fez a sua parte, fica na expectativa de que o sistema de coleta e separação dos recicláveis evolua. Em 2019, o setor da reciclagem do PET, por exemplo, trabalhou com ociosidade de 30% em sua capacidade instalada porque não encontrou embalagens para serem recicladas. Elas estão sendo descartadas de maneira errada e, por falta de coleta e separação corretas, estão sendo enterradas junto com o lixo comum.
Existem no Brasil exemplos de coleta seletiva feitos pelo poder público, dotados de centrais de triagem a partir das quais os materiais podem ser encaminhados para a reciclagem. Mas eles são muito escassos. Esse trabalho está praticamente nas mãos de catadores, cooperativas e sucateiros, que hoje são os grandes “colaboradores” ambientais do País.
Havendo acesso a esse material, a indústria consegue dar conta de sua responsabilidade. Nos últimos cinco anos,foram investidos mais de R$ 100 milhões em tecnologia e na geração de demanda para o PET reciclado. Mais de 311 mil toneladas do produto (ou 55% do total) foram recicladas em 2019, alimentando uma indústria diversificada, que retorna à sociedade itens de alto valor agregado, que vão das tintas ao têxtil, passando pelo setor automotivo e chegando até mesmo a novas embalagens destinadas inclusive ao setor alimentício.
Isso acontece porque houve um intenso trabalho da indústria para o desenvolvimento de aplicações para o PET reciclado, iniciado há 20 anos. A demanda pelo PET reciclado é grande e novos investimentos de pelo 50 milhões estão represados por conta do receio de não haver matéria-prima para abastecer as linhas de produção. Enquanto isso, assistimos ao desperdício de embalagens sendo enterradas junto com o lixo comum ou jogadas nas ruas, rios e córregos pelo País.
Os 10 anos da PNRS e a instituição do novo marco do regulatório do saneamento são provas de que a sociedade brasileira, por meio de seus representantes, é capaz de se articular e criar meios modernos para a solução dos seus inúmeros problemas. Mas essa qualidade precisa estar refletida, de uma vez por todas, em pragmatismo e eficiência nas ações de todos, inclusive de nossos governantes, para que saiam do papel e virem realidade.
Não é possível continuar postergando a evolução na coleta e triagem do RSU, alegando problemas financeiros e tentando jogar esse custo para o setor empresarial ou para o cidadão. Não podemos mais conviver com esse gargalo que impacta negativamente não só o meio ambiente, mas as condições de vida de milhões de brasileiros. Afinal de contas, a própria lei ressalta que a responsabilidade sobre a logística reversa deve ser compartilhada com ações integradas e encadeadas, com cidadãos, governo e empresas cumprindo o seu papel.